Entrevista Dra. Ana Luisa Segatto: “Com reforma, só haverá punição quando evidenciado o dolo”

Ana Luísa Segatto, que defende a mudança, diz que legislação atual é extremamente genérica

O Congresso Nacional está prestes a aprovar em definitivo a reforma na Lei de Improbidade Administrativa. As discussões se arrastam desde 2018, por meio do projeto de lei 10.887 e traz importantes inovações na legislação que pune agentes públicos que praticam ilegalidades no âmbito da administração pública, como o desvio de recursos do erário.

A advogada Ana Luísa Segatto, que é especialista em Processo Civil, Direito Administrativo e Direito Anticorrupção, explica que a reforma na Lei de Improbidade é importante porque a atual redação é extremamente genérica, com diversas brechas e interpretações ampliativas e tem servido como um “mecanismo de repreensão que desconsidera princípios basilares” ao exercício do poder punitivo.

Entre as alterações já aprovadas pela Câmara Federal está o fim da imputação da improbidade administrativa na forma culposa, restando apenas a necessidade de se comprovar o dolo (intenção) para o cometimento dos atos ímprobos por parte do servidor público. Em razão dessa alteração, considerada uma das mais preponderantes, os atos culposos deixarão de ser punidos como improbidade.

Tramita no Congresso Nacional uma importante reforma na Lei da Improbidade Administrativa. Um dos pontos em debate é a exigência de comprovação do dolo para a imputação do suspeito de ter praticado o crime contra o patrimônio público. Qual será o impacto dessa alteração nas investigações contra casos de corrupção que estão sendo apurados pelo Poder Judiciário?

O Projeto de Lei n. 10.887/2018 de autoria do deputado Roberto de Lucena (Pode/SP) e relatoria do deputado Carlos Zarattini (PT/SP), visa reformular e atualizar em diversos aspectos a Lei de Improbidade Administrativa em vigor desde 1992. Se aprovada e sancionada, produzirá seus efeitos na data em que vier a ser publicada. Isso significa que, assim que entrar em vigor, será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados, obviamente, os atos praticados e as situações jurídicas ocorridas sob a constância da norma anterior. Ou seja, os procedimentos em andamento que apuram a suposta prática de ato de improbidade deverão se amoldar à nova legislação.

De que forma se comprova o dolo na improbidade administrativa?

A improbidade administrativa é a ilegalidade qualificada pela ação nociva do agente que atua com desonestidade. Em outras palavras, é o ato ilegal com um “plus”: a vontade de atuar com desprezo à coisa pública e aos seus princípios. Assim, para que se comprove esse dolo é necessário, precipuamente, diferenciar o ato ilegal do ato ímprobo, pois, não são conceitos equivalentes, nem sempre que o agente praticar um ato ilegal terá cometido um ato ímprobo. E, demonstrar a atuação consciente e manifesta do agente contra o interesse público.

Ao se excluir a culpa da possibilidade de punibilidade, o agente que porventura tenha praticado ação ou omissão por negligência, imprudência e imperícia, e dessa forma causar resultado que afete o erário público, como pode ser responsabilizado ou até mesmo punido?

O agente público que culposamente causar prejuízo ao erário, isto é, por alguma prática irregular nas suas atribuições e que não se evidenciar má intenção, poderá ser responsabilizado mediante processo administrativo disciplinar, por exemplo, como é o caso da Lei 8.112/1990 que dispõe sobre o regime jurídico do servidores públicos civis federais, e prevê expressamente quanto à responsabilidade por ato omissivo ou comissivo, doloso ou culposo, que resulte em prejuízo ao erário, além da possibilidade de aplicação das repercussões e efeitos da lei civil quanto ao devido ressarcimento.

Muitos especialistas têm apontado que a reforma da Lei de Improbidade se dá para combater um problema de cultura jurídica no Brasil, baseado no punitivíssimo. A senhora concorda com essa premissa? A reforma da legislação é suficiente para reverter esse quadro ou seriam necessárias outras iniciativas para resolver essa questão?

Sem sombra de dúvidas. A Lei 8.429/1992 que dispõe atualmente sobre a prática da improbidade administrativa possui uma redação extremamente genérica, com diversas brechas, interpretações ampliativas e tem servido como um mecanismo de repreensão que desconsidera princípios basilares ao exercício do poder punitivo e impõe aos agentes danos irreparáveis. A reforma da legislação é um primeiro passo na tentativa de se reverter essa “fome” demasiada por punição a todo custo. Todavia, ainda se faz verdadeiramente necessária uma reformulação no modelo interpretativo propriamente dito e na compreensão do que perfaz o ato ímprobo, desde a perspectiva dos órgãos investigativos até o Poder Judiciário.

Uma alteração aprovada no texto que tramita no Congresso é que os efeitos do ressarcimento e da multa civil por ato de improbidade serão transmitidos aos herdeiros, até o limite do valor da herança. Na sua avaliação essa possibilidade pode-se evitar que o enriquecimento ilícito seja transmitido?

A atual legislação prevê a responsabilidade do sucessor às diversas sanções previstas até o limite do valor da herança daquele que comprovadamente causar lesão ao patrimônio público ou se enriquecer ilicitamente. Essa previsão é extremamente abrangente, uma vez que, pode acarretar na transcendência de determinadas sanções ao sucessor do agente infrator, o que é constitucionalmente vedado no ordenamento pátrio. Só pode repercutir sobre o patrimônio transmitido aos sucessores a condenação ao ressarcimento de danos e a perda de bens ilicitamente acrescidos. As outras sanções não podem ser transmitidas, sequer a multa civil poderá recair sobre a herança, uma vez ser uma espécie de pena. E é justamente essa a alteração da proposta legislativa 10887/18, em que o sucessor ou o herdeiro estarão sujeitos tão somente à obrigação de reparar o suposto dano até o limite da herança ou do patrimônio transferido.

As alterações que estão em tramite de aprovação também trazem novos prazos, como para sanções e prescricionais. Gostaria que a senhora explicasse um pouco melhor esses prazos e, em suma, é uma alteração positiva?

Há no Projeto de Lei a proposta de alteração de certos prazos como é o caso do prazo prescricional para propositura da ação que intenta a aplicação das sanções. Na legislação em vigor, o prazo de prescrição varia conforme o sujeito que pratica o ato, com diversos critérios, a exemplo do prazo de cinco anos após o término do mandato de um agente político, além de diversas visões interpretativas sobre esse mesmo prazo. O PL 10.887/2018 visa estabelecer um prazo de oito anos a contar da data do fato ou, no caso de infrações permanentes da data em que cessar. De modo geral, essa mudança é significativa já que estipula o prazo de forma unificada, dando um grau de isonomia à aplicação da lei, mas, não totalmente positiva, pois, à primeira vista se percebe ausência de razoabilidade no período estabelecido.

Muito se discute no âmbito jurídico que a Lei de Improbidade sem a reforma “permite punir tudo”, inclusive irregularidades formais. Todavia, alguns princípios continuarão sendo fundamentais para a administração pública, entre os quais o da legalidade. Na sua avaliação, seguir a legalidade à risca dificulta a funcionalidade administrativa?

O princípio da legalidade aplicado na seara administrativa, basicamente, estabelece que toda e qualquer atividade da Administração Pública deve ser autorizada por lei. É, assim, um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, que se configura pela submissão do Estado às leis que ele mesmo editou. O administrador público deve agir exatamente como prescreve a legislação, no caso de atuação vinculada. Já nas circunstâncias de atuação discricionária, a escolha é possível, mas, deve haver observância dos termos, condições e limites a serem impostos. É plenamente crível, desse modo, que obedecendo às exigências da legalidade, o gestor consiga ter margem sim à funcionalidade administrativa. O princípio da legalidade é fundamental por assegurar que a atuação estatal esteja limitada à disposição da lei, prevenindo arbitrariedades e constituindo uma das principais garantias aos direitos individuais.